segunda-feira, 13 de abril de 2009

E para começar, queremos pregar o respeito ao corpo da mulher...

Depoimento de Rita Lee (cantora brasileira)

Eu tinha 13 anos, em Fortaleza, quando ouvi gritos de pavor. Vinham da vizinhança, da casa de Bete, mocinha linda, que usava tranças.Levei apenas uma hora para saber o motivo. Bete fora acusada de não ser mais virgem e os irmãos a subjugavam em cima de sua estreita cama de solteira, para que o médico da família lhe enfiasse a mão enluvada entre as pernas e decretasse se tinha ou não o selo da honra. Como o lacre continuava lá, os pais respiraram, mas a Bete nunca mais foi à janela, nunca mais dançou nos bailes e acabou fugindo para o Piauí, ninguém sabe como, nem com quem.
Eu tinha apenas 14 anos, quando Maria Lúcia tentou escapar, saltando o muro alto do quintal da sua casa para se encontrar com o namorado. Agarrada pelos cabelos e dominada, não conseguiu passar no exame ginecológico. O laudo médico registrou vestígios himenais dilacerados, e os pais internaram a pecadora no reformatório Bom Pastor, para se esquecer do mundo. Realmente, esqueceu, morrendo tuberculosa.
Estes episódios marcaram para sempre a minha consciência e me fizeram perguntar que poder é esse que a família e os homens têm sobre o corpo das mulheres? Ontem, para mutilar, amordaçar, silenciar. Hoje, para manipular, moldar, escravizar aos estereótipos.
Todos vimos, na televisão, modelos torturados por seguidas cirurgias plásticas. Transformaram seus seios em alegorias para entrar na moda da peitaria robusta das norte americanas. Entupiram as nádegas de silicone para se tornarem rebolativas e sensuais, garantindo bom sucesso nas passarelas do samba. Substituíram os narizes, desviaram costas, mudaram o traçado do dorso para se adaptarem à moda do momento e ficarem irresistíveis diante dos homens.
E, com isso, Barbies de facaria, provocaram em muitas outras mulheres - as baixinhas, as gordas, as de óculos - um sentimento de perda de auto-estima. Isso exatamente no momento em que a maioria de estudantes universitários (56%) é composto de moças.
Em que mulheres se afirmam na magistratura, na pesquisa científica, na política, no jornalismo. E, no momento em que as pioneiras do feminismo passam a defender a teoria de que é preciso feminilizar o mundo e torná-lo mais distante da barbárie mercantilista e mais próximo do humanismo.
Por mim, acho que só as mulheres podem desarmar a sociedade. Até porque elas são desarmadas pela própria natureza. Nascem sem pênis, sem o poder fálico da penetração e do estupro, tão bem representado por pistolas, revólveres, flechas, espadas e punhais. Ninguém diz, de uma mulher, que ela é de espadas. Ninguém lhe dá, na primeira infância, um fuzil de plástico, como fazem com os meninos, para fortalecer sua virilidade e violência.
As mulheres detestam o sangue, até mesmo porque têm que derramá-lo na menstruação ou no parto. Odeiam as guerras, os exércitos regulares ou as gangues urbanas, porque lhes tiram os filhos de sua convivência e os colocam na marginalidade, na insegurança e na violência.
É preciso voltar os olhos para a população feminina como a grande articuladora da paz.
E para começar, queremos pregar o respeito ao corpo da mulher.
Respeito às suas pernas que têm varizes porque carregam latas d'água e trouxas de roupa. Respeito aos seus seios que perderam a firmeza porque amamentaram seus filhos ao longo dos anos. Respeito ao seu dorso que engrossou, porque elas carregam o país nas costas. São as mulheres que irão impor um adeus às armas, quando forem ouvidas e valorizadas e puderem fazer prevalecer a ternura de suas mentes e a doçura de seus corações.
"Nem toda feiticeira é corcunda. Nem toda brasileira é só bunda."

Rita Lee

Pessoal, num "ps", dicas de livros sobre o assunto:
Modos do Homem e Modas de Mulher (grande Gilberto Freyre)
e Nu & Vestido: 10 antropólogos revelam a cultura do corpo carioca (Goldenberg)
O Corpo como Capital (Goldenberg tb!)

;)

3 comentários:

Pam disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Vinicius disse...

Ótimo texto.
Esses dias eu estava conversando com uns amigos e comentei que a nossa sociedade está muito machista. Perguntaram para "falar mais sobre isso", mas infelizmente na hora não veio muitos argumentos bons, não que não tinha argumentos e não saberia fundamentar, mas como o assunto era sobre a violência, me perdi nas amarrações assunto com pensamentos, rs. Agora com o texto da Rita Lee dá para ter um norte de onde sair e para onde chegar.
P.S: E eu não tenho um tempo para o Blog, quando tem alguma coisa martelando na cabeça, sento e escrevo. Mas estou numa fase não muito “inspirativa”
Beijos

ionice disse...

Vc sabia que este texto é da escritora cearense Heloneida Studart?
Um ícone do feminismo nos anos 70.
Quem não leu o livro “mulher objeto de cama e mesa”, de 1974?
A internet atribuiu à Rita Lee indevidamente, que nem cearense é, ela é paulista!
Quem consegue corrigir a internet?